Hogosha
Capítulo 1Numa noite quente de verão, sob a luz das estrelas e das lâmpadas de papel, um grupo de viajantes comia e conversava no pátio de uma estalagem na montanha. O cansaço da viagem e o conforto do saqué encorajavam a conversa, e cada um contava a sua anedota ou história preferida.
Por fim o silêncio instalou-se e enquanto alguns esvaziavam o seu copo antes de pedir uma segunda ronda, um velho homem perguntou:
- E o senhor Ginko? Parece que vem de longe, e certamente tem alguma história exótica para nos contar?
Desde o princípio do serão o Ginko tinha atraído a curiosidade. Era um homem reservado de trinta anos, com cabelos brancos e de olhos verdes, vestido com roupas ocidentais e sempre com um cigarro na boca. Interessada, a assistência voltou-se para ele, enquanto as vozes se silenciavam.
O Ginko expirou preguiçosamente uma nuvem de tabaco, antes de por fim responder:
- Infelizmente sou eu quem mais gostaria de ouvir histórias interessantes. Há semanas que percorro estas montanhas à procura de quem conheça lendas da região sobre as quais apenas li em textos antigos, mas parece que elas foram esquecidas, e ninguém me pôde ajudar.
O velho espantou-se:
- Esta terra é muito resguardada, mas certamente o que não nos faltam são histórias e lendas locais... O que é que gostaria de ouvir?
- Interesso-me por plantas e animais... O texto que li mencionava curiosidades muito particulares. Quero averiguar por mim próprio a veracidade dessas lendas.
Seguiu-se uma discussão sobre as plantas e animais notáveis da região, mas ninguém conseguiu lembrar-se de algum detalhe que chamasse a atenção do Ginko.
Por fim a conversa desviou para outros assuntos, e o Ginko voltou ao seu mutismo habitual. No entanto, o seu sossego foi de pouca dura, porque uma criança ajoelhou-se ao seu lado. Era uma menina que aparentava uns oito anos. Os seus cabelos lisos e escuros caíam-lhe pelos ombros, e estava vestida num tosco quimono camponês.
- Senhor Ginko, eu gosto de passear pelas florestas à volta da minha aldeia, e conheço bem os animais que por ali vivem. Se desejar, teria muita honra em trabalhar como sua guia...
O Ginko ofereceu um sorriso surpreendido:
- Pequena, agradeço a tua oferta, mas pensas mesmo que me podes ajudar? Sabes, não me interesso por borboletas coloridas ou carochas raras, estou à procura de animais que são diferentes de outra forma. Seria difícil explicar-te...
A criança fitou-o com os seus grandes olhos escuros, e respondeu-lhe muito seriamente:
- Não, estes animais não são diferentes dos outros que conheço. Mas vivem de outra maneira que eles. Eu já tentei trazer alguns à minha professora na vila como presente, mas eles morrem sempre pouco depois de lá chegar.
O Ginko voltou-se para ela, subitamente interessado:
- Não será que tens pouco jeito para tratar dos pobres bichos?
A menina respondeu indignada:
- Não é verdade! Tenho os mesmos há anos em minha casa, e nunca lhes aconteceu nada. E depois da primeira morte tive muito cuidado, mas não mudou nada. Não percebo! Talvez o ar da vila não lhes faça bem?
Depois de alguns momentos de reflexão, o Ginko respondeu-lhe:
- Está bem, a tua história interessa-me. Aceito acompanhar-te até à tua aldeia.
A menina deu-lhe um brilhante sorriso, antes de começar a negociar renhidamente o seu salário. Por fim o Ginko soltou uma gargalhada:
- És dura em negócios, pequena! Como te chamas?
A criança levantou-se, antes de lhe fazer uma vénia.
- Chamo-me Iwako. É um prazer trabalhar para si.
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No dia seguinte eles percorreram vagarosamente os tortuosos caminhos da montanha. A intensa luz do sol de verão era filtrada pelos bosques de faias e bambus que eles atravessavam, mas o calor obrigava-os a fazer frequentes pausas para se refrescar com a água fria dos riachos. O sol já estava perto do horizonte quando Iwako indicou o refúgio onde eles passariam a noite.
O Ginko imobilizou-se, esperando por Iwako:
- Já me tinha esquecido de quão lento é andar acompanhado. Ainda estamos longe da tua aldeia?
A Iwako respondeu, preocupada:
- Não estamos muito longe... Também tenho pressa, porque amanhã é o dia do festival Tanabata, não posso chegar atrasada!
Ginko observou a menina que andava ao lado dele. O seu farnel estava cheio, e parecia pesado para as suas pequenas costas. Gotas de suor escorriam pela sua cara.
- Não achas que exageras, Iwako? O teu saco parece-me demasiado pesado para ti… Porque viajas com tantas coisas?
Iwako retomou o fôlego, antes de lhe sorrir:
- Não são assim tantas coisas. Quando volto da vila trago sempre pequenas coisas bonitas para vender às mulheres da aldeia. Às vezes também trago unguentos ou medicamentos, quando alguém precisa. É mais difícil quando vou à vila, porque levo sempre arroz ou legumes para oferecer à professora, e então o meu saco é mais pesado!
- Essas viagens devem ser arrasantes. Vens à aldeia frequentemente, ou é raro?
- Não, eu vivo na aldeia com os meus pais, não gosto de deixa-los por muito tempo. Não gosto de viver na vila, e é com estas viagens que posso ganhar dinheiro.
Entretanto eles tinham chegado ao refúgio, uma simples cabana de bambu coberta por um tecto de palha. Ambos pousaram os seus sacos de viagem, e descansaram olhando a serra coberta por floresta.
Por fim Iwako levantou-se para acender o fogo:
- E o senhor Ginko, o que é que faz na vida? Colecciona animais ou plantas?
O Ginko acendeu um novo cigarro antes de responder:
- Quase... Sou um Mushishi, digamos que colecciono mushis, ou coisas ligadas aos mushis.
Iwako perguntou espantada:
- Mushis? O que são mushis?
- Não são nem plantas nem animais, mas também estão vivos. A maior parte das pessoas não os pode ver, e portanto não os conhecem. De qualquer maneira, em geral homens e mushis não se cruzam, mas às vezes alguém pode ter problemas com eles, e pede a minha ajuda.
Eles passaram o resto do jantar a falar de mushis, e da vida dos mushishi. Iwako parecia muito interessada, mas o Ginko ainda estava a falar quando notou que ela já tinha adormecido profundamente. Ele cobriu-a com o seu casaco, e terminou o seu cigarro a olhar as estrelas, antes de se ir deitar.
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No dia seguinte, apesar de terem começado a viagem pouco antes de amanhecer, só chegaram ao seu destino no fim da manhã. A aldeia parecia estar precariamente empoleirada sobre a encosta da montanha, enquanto o arrozal ocupava o resto do vale encaixado.
Iwako precipitou-se para pousar o seu saco em casa, antes de deixar o Ginko:
- Vou prevenir os meus pais da sua vinda, antes de ir ao festival. Até logo!
O Ginko desfez-se do seu fardo e sentou-se para desfrutar da brisa e do seu cigarro. A agitação e as vozes no centro da aldeia chegavam aos seus ouvidos, enquanto observava a superfície calma do arrozal em apeio. A sua contemplação foi interrompida pelo barulho de passos e ele reparou num rapaz que não teria mais de quinze anos debruçado sobre um vaso. O Ginko aproximou-se dele:
- Bom dia. Chamo-me Ginko. Serás, talvez, o irmão da Iwako?
Um pouco surpreendido, o rapaz saudou-o:
- Muito prazer, senhor Ginko! O meu nome é Keiji, e sou um amigo da Iwako, não o irmão.
Ginko olhou curiosamente o vaso. Era um largo recipiente de barro quase cheio de água, e com terra no fundo. Diversas plantas aquáticas cobriam a superfície, mas entre as folhas ele podia distinguir movimentos de animais. Pareciam serpentes pálidas, mas tinham pequenos membros e barbas perto da cabeça. Depois de alguns momentos ele indagou:
- São salamandras?
Keiji sorriu:
- Com efeito, são salamandras que a Iwako recolheu. Ela sempre insiste que eu trate delas enquanto está de viagem, e com Iwako não se discute!
Ginko transmitiu um sorriso entendido:
- Estou a ver... Tens muita paciência com ela, mas não lhe dês maus hábitos!
Ginko agachou-se ao lado de Keiji enquanto este dava de comer às salamandras. Ele lembrou-se subitamente, e perguntou:
- Estão quase adultas... Visto a época do ano, Iwako deve tê-las trazido pouco antes de ir à vila, não?
Keiji olhou-o surpreendido:
- Antes pelo contrário, este ano ela não trouxe nenhuma salamandra.
Ele indicou um dos animais:
- Esta aqui por exemplo é a mais velha, e vive neste vaso há já cinco anos!
O cigarro do Ginko caiu-lhe dos lábios. Ele recuperou rapidamente a beata, mas de repente os seus olhos arregalaram-se:
- Há várias coisas que não percebo: como é possível que a Iwako tenha apanhado salamandras quando tinha dois ou três anos? Essa criança parece-me demasiado precoce!
Foi a vez do Keiji de ficar espantado:
- Criança? O senhor não sabe? A Iwako é mais velha do que eu!
Notas:-
Mushishi: vem de mushi (insecto) + shi (mestre): mestre dos insectos. Mas neste contexto mushi indica criaturas sobrenaturais, e não insectos comuns.
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Festival Tanabata: festival tradicional japonês de origem chinesa organizado em meados de Agosto. É costume atar tiras de papel a bambus em que se escreve os desejos e aspirações de cada um.
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Hogosha: guardião